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A Ave de Rapina da minha Cidade

A cidade se tornou cheia de possibilidades para eles. Comida fácil, pouca concorrência. .

Por Aimée Resende em 03/02/2025 às 18:01:35
Carcará por Aimée Resende

Carcará por Aimée Resende

Escuto todo dia o som dos carcarás fazendo ninho nas árvores das praças, do meu condomínio, parece que o mundo é infindo para eles. Mas nem sempre eu via esses carcarás.

Eu via muita coruja, passando pelas janelas, fazendo aquele som que era meio assustador, misturado com as asas de morcegos perdidos se escondendo de qualquer dona de apê com a luz acesa. As corujas pareciam donas da noite, sentinelas de um tempo em que os pássaros diurnos já estavam recolhidos e os mistérios do escuro ganhavam espaço. Eram elas que dominavam as madrugadas, mas com o tempo, seus pios foram se tornando mais raros, abafados por sons mais agressivos, mais estridentes. Sons que, antes, pareciam pertencer apenas ao sertão.

Acordar com os bentevis e os pequeninos pássaros que não-sei-o-nome era uma rotina musical, quase um despertador natural. Eles tinham um horário exato para cantar, um ritual que anunciava a manhã chegando, como se sincronizados com a primeira luz do sol. Mas logo depois, vinha a vez dos carcarás. E então, tudo mudava.

O som dos carcarás não é suave como o canto dos bentevis. É um som rasgado, rascante, que se impõe no ar. Quando começam a vocalizar, as coisas se transformam. É como se uma hierarquia invisível se instaurasse no céu. Carcarás em um nível, urubus em outro, e entre eles, as aves menores tentando se ajustar à nova dinâmica. Entre o céu e o rio, um redemoinho de pássaros disputa espaço e comida. Pombos se tornam presas fáceis. Pombo do centro da cidade, sozinho, é para virar almoço da ave de rapina.

Carcará não é para estar na cidade. É bonito, mas onde ele devia estar, provavelmente não existe mais. Ou talvez exista, mas não do jeito que costumava ser. O habitat natural foi cedendo espaço ao concreto, ao asfalto, às rodovias que cortam o que um dia foram matas e campos abertos. O sertão – berço dessa ave – vem se encurtando, pressionado pelo avanço das cidades. E os carcarás, adaptáveis e oportunistas, encontraram novos territórios entre os prédios, entre as praças e terrenos baldios, entre os restos do que jogamos fora.

A cidade se tornou cheia de possibilidades para eles. Comida fácil, pouca concorrência. Eles vieram ver se a refeição estava posta. E estava. Ratos, lixo, mangue sujo, uma dieta variada, uma refeição completa.

No alto dos postes e antenas, eles observam. Diferente dos urubus, que planam vagarosamente, carcarás são mais ativos, mais astutos. Descendem em voos certeiros, pegam o que precisam e retornam para seu ponto de vigia. São caçadores urbanos agora. Seu olhar penetrante analisa cada detalhe, cada movimento. E eles aprenderam a conviver conosco sem medo, a dividir espaço, a se aproveitar do que sobrou da nossa bagunça.

E eu os vejo, todos os dias. De manhã, limpando as penas com paciência, aguardando o melhor momento para agir. No fim da tarde, em bandos, atravessam os céus de Aracaju, indo sabe-se lá para onde.

Será que um dia vão embora, quando tudo for ainda mais concreto? Ou serão os novos donos do céu da cidade? Eu não sei, mas, por enquanto, os carcarás estão aqui. Gritando, dominando os ventos, ocupando espaços que antes não eram deles.

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